RESOLUÇÃO ACERCA DA QUESTÃO PALESTINA
COMITÊ CENTRAL DA LIGA COMUNISTA BRASILEIRA – LCB
27/09/2025
A questão Palestina e uma análise da Catástrofe Contínua.
Imagine uma terra de oliveiras centenárias e de laranjais. Um lugar, onde nas ruas estreitas as vozes se misturavam em árabe, hebraico, armênio, grego e inglês. Essa sociedade, era composta por uma vida urbana vibrante, com cafés, escolas, jornais e sindicatos. No campo, os camponeses cultivavam trigo e azeite, transmitindo de geração em geração a memória da terra. Essa mesma sociedade, escrevia poemas, imprimia jornais e erguia revoltas contra o domínio britânico. Um povo que apesar de tensões, partilhava o mesmo chão, a mesma história e a mesma esperança de futuro.
Em maio de 1948, forças israelenses, que incorporaram grupos paramilitares sionistas notórios por massacres como o de Deir Yassin (palestinos desarmados), lançaram uma grande ofensiva. O resultado direto dessa guerra foi o deslocamento permanente de mais de 750.000 palestinos, que foram expulsos ou forçados a fugir de suas casas por meios violentos. Em um período de sete meses, mais de 500 cidades, vilas e bairros urbanos de maioria árabe foram despovoados. A negação dessas atrocidades faz parte da narrativa oficial israelense, que alega que os palestinos partiram voluntariamente.
Nakba de 1948
Nakba é o evento fundacional que estabeleceu a diáspora palestina. A “catástrofe” se refere ao deslocamento em massa e à desapropriação dos palestinos durante a Guerra Árabe-Israelense de 1948. Contudo, compreendê-la apenas como catástrofe inaugural é insuficiente. A Nakba é, sobretudo, um processo histórico em curso, expressão de uma forma específica de dominação que Patrick Wolfe (historiador australiano e estudioso do colonialismo) denominou como colonialismo de povoamento, e cuja lógica consiste não apenas na exploração da terra, mas na substituição sistemática da população originária. Analisar a Nakba não é um processo de análise de memória histórica, é a chave para compreender a permanência do colonialismo de povoamento na Palestina contemporânea. Para tanto, articula-se uma reflexão conceitual com a conjuntura atual, sendo a Palestina uma ferida aberta do imperialismo contemporâneo e também um horizonte de resistência e possibilidade de emancipação
Uma análise marxista-leninista permite situar esse fenômeno em seu próprio terreno: o do imperialismo. Longe de ser um acidente regional, o projeto sionista se consolidou como ponta avançada da dominação imperialista no Oriente Médio, articulando-se à expansão do capital e à necessidade de controle geopolítico de uma região estratégica. Nesse sentido, a luta palestina se inscreve na tradição mais ampla das lutas de libertação nacional, tal como formuladas por Lenin, e tantos outros pensadores, que apontaram a inseparabilidade entre a emancipação nacional e a luta contra o imperialismo mundial.
Na década de 1960, no Centro de Pesquisas da OLP (Organização para a Libertação da Palestina) em Beirute, consolidou-se a formulação do conceito de colonialismo de povoamento. Diferentemente do colonialismo clássico, voltado sobretudo à exploração econômica dos territórios conquistados, seu objetivo não é apenas a exploração, mas a ocupação permanente do território com a intenção de “suplantar os povos indígenas existentes”. Este modelo de povoamento, é exemplificado pela colonização dos Estados Unidos, Canadá e Austrália, e se baseia na eliminação (e não na exploração) da população nativa, de modo que os colonos possam criar uma nova sociedade em um novo território. A população colonizadora é composta, muitas vezes, por grupos familiares que buscam reproduzir seu modo de vida, investindo economicamente na própria colônia para desenvolver a população e o mercado interno.
Enquanto o colonialismo clássico visa terminar com a sua independência formal e a partida do colonizador, o colonialismo de povoamento torna essa separação inviável, pois o colono se torna o novo “nativo”. Assim, a luta do povo palestino não é uma simples luta por libertação de um poder externo, mas uma luta existencial contra a própria “eliminação”. A simples qualificação dos eventos como “conflito” ou “guerra” pode ser problemática, pois sugere uma simetria que não existe em uma relação onde o objetivo central é o apagamento físico e histórico de um povo.
O quadro teórico do colonialismo de povoamento oferece uma análise para interpretar o projeto sionista. A ideia de que o sionismo é uma forma de colonialismo de povoamento não é recente. Esse projeto sionista, no entanto, apresenta uma excepcionalidade em relação a outros casos. Ao contrário dos impérios francês e britânico, que orquestraram seus empreendimentos a partir de uma metrópole distante, Israel não opera com uma metrópole convencional. Em vez disso, seu projeto se tornou uma manifestação do imperialismo ocidental com atributos próprios, dependendo de alianças estratégicas com potências como os Estados Unidos para sua sustentação. O fornecimento contínuo de equipamentos militares e o uso do poder de veto em fóruns internacionais funcionam como o substituto de uma metrópole tradicional, garantindo a continuidade e a legitimidade do projeto sionista. Essa adaptação complexa ao cenário geopolítico pós-Segunda Guerra Mundial permitiu que o projeto de povoamento se mantivesse e se expandisse, mesmo em uma era caracterizada por empreendimentos coloniais (como os recursos minerais).
Nakba de 2025
Se a Nakba representou a instauração do colonialismo de povoamento na Palestina, a conjuntura atual demonstra a sua continuidade. A diferença entre ambas é que hoje temos uma Nakba televisionada. Este processo de limpeza étnica e extermínio está sendo executado em tempo real e de forma amplamente visível pelo mundo inteiro. Em apenas um ano e meio, a destruição total de residências se aproxima de 92%. Já a expectativa de vida em Gaza teve uma perda de 30,5 anos, desde o início da guerra, de acordo com a revista médica The Lancet, por exemplo. Mais uma vez, encaixamos na lógica de eliminação e negação de qualquer possibilidade de retorno ou reconstrução.
O Estado de Israel tem feito repetidas vezes o uso do argumento de “autodefesa”. Para alguns historiadores, tal justificativa pode ser compreendida como um pretexto para completar o que o movimento sionista não conseguiu em 1948. As evidências dessa violência extrema e desproporcional em Gaza, com a destruição de infraestruturas essenciais e a morte de dezenas de milhares de civis, tornam cada vez mais difícil para Israel persuadir a si mesmo e à comunidade internacional de que suas ações constituem uma resposta legítima.
Essa crescente dificuldade de legitimação no plano militar se reflete diretamente no campo diplomático. Nos últimos dias, o discurso de Benjamin Netanyahu na Assembleia Geral das Nações Unidas foi precedido e marcado por uma manifestação visível de isolamento internacional. Delegações de diversos países, incluindo o Brasil, se retiraram do plenário em protesto, deixando o púlpito diante de um auditório esvaziado. As vaias que antecederam sua fala constituem um sinal inequívoco de que a narrativa hegemônica, que por décadas protegeu Israel sob o amparo das potências ocidentais, encontra-se em colapso, revelando a erosão do consenso diplomático que por tanto tempo permitiu a Israel atuar com relativa impunidade.
A saída de delegações, mesmo de países aliados, demonstra a crescente contradição entre os interesses de longo prazo de cada nação e a necessidade de se alinhar publicamente a um projeto imperialista que se torna cada vez mais indefensável moral e politicamente.
Netanyahu ainda defendeu as ações em Gaza, comparou o conflito ao 11 de Setembro e criticou duramente os países que reconheceram o Estado palestino, acusando-os de “cederem”. Também foi capaz de atacar líderes mundiais, dizendo que por vezes se curvaram a “mídias tendenciosas, grupos islâmicos radicais e máfias antissemitas”. Sua retórica busca justificar as ações militares e o caráter colonial de seu Estado, acusando seus oponentes de travar uma “guerra política e legal contra Israel”.
A paz no Oriente Médio não virá de soluções paliativas ou de acordos diplomáticos superficiais, mas da superação do imperialismo e do colonialismo de povoamento. A luta palestina é, em sua essência, uma luta anti-imperialista, e a solidariedade com este povo é uma tarefa primordial para a vanguarda revolucionária em todo o mundo.
A Nakba não terminou em 1948. Ela se repete em cada demolição de casas, em cada bombardeio sobre Gaza, em cada oliveira arrancada ou em cada pólvora que paira sobre o ar. Mas se a catástrofe é contínua, também é contínua a sua resistência e fica evidente que a questão palestina transcende a esfera regional e deve ser compreendida como um fenômeno estrutural do sistema internacional contemporâneo.
O conflito expõe os limites da ordem global sustentada pela hegemonia ocidental e pelos mecanismos seletivos de defesa dos direitos humanos. O apoio contínuo de potências como os Estados Unidos e a União Europeia a Israel, mesmo diante de evidências de crimes de guerra, confirma que o direito internacional é mobilizado de maneira desigual e subordinada a interesses estratégicos.
A luta palestina é uma luta abrangente ao imperialismo e ao colonialismo de povoamento, que permanecem como eixos de dominação nas relações globais. A solidariedade internacional com o povo palestino deve ser entendida como tarefa política fundamental diante da crise de legitimidade que atravessa o sistema internacional.
