DEFENDER A CAUSA TRANS É UM DEVER DOS COMUNISTAS.
Artigo de opinião por Rowan Fiorelli
A dita esquerda radical, em grande medida, ainda não conferiu à questão trans — compreendendo inseparavelmente a não-binariedade — o tratamento teórico e prático que ela exige. Essa lacuna abriu espaço para que visões reacionárias, ora em roupagem liberal, ora mascaradas de versões ditas “feministas”, mas profundamente trans-excludentes, se impusessem. No entanto, tais análises não passam de desvios idealistas e conservadores, incapazes de perceber que a opressão de gênero — sobretudo na forma da transfobia — está organicamente entrelaçada ao racismo, à exploração de classe e às múltiplas violências estruturais. Reconhecer a centralidade da luta trans não é um adendo secundário ao programa comunista: trata-se de um dever. Somente ao colocar a emancipação das pessoas trans como parte fundamental da estratégia socialista, podemos alcançar uma compreensão plena da questão de gênero.
O cenário da dita esquerda radical brasileira também revela seu cemitério de péssimas concepções da pauta trans. Há seitas disfarçadas de partido operário que enxergam toda luta de gênero e raça apenas como “identitarismo” — como se fosse mais revolucionário repetir chavões mofados do que enfrentar as contradições reais da classe trabalhadora. Outros, com uma linha de enfrentamento e até relevância considerável, foram capazes de chamar a causa trans de “condição”, como se fosse problema administrativo a ser resolvido em ata. Também há organizações minúsculas, quase folclóricas, que se orientam pelo feminismo radical transfóbico e se agarram à sua irrelevância como um troféu de pureza. E, ironicamente, até partidos historicamente respeitados, cheios de quadros acadêmicos e intelectuais aclamados, não conseguem produzir uma análise que integre a luta trans à questão de gênero e de raça — limitando-se a repetir fórmulas abstratas sobre classe enquanto tropeçam diante da realidade viva. No fundo, todos esses setores, do menor ao maior, compartilham o mesmo traço: são incapazes de lidar com a materialidade da opressão trans e, por isso, preferem se esconder atrás de dogmas e desculpas. Não digo isso a partir de uma posição de quem tem a linha correta ou pertence a um grupo que a possui. É uma crítica dirigida ao conjunto da esquerda radical organizada, porque, enquanto suas estruturas e direções não incorporarem de forma real a pauta trans nas análises e práticas políticas, seguirão reproduzindo as mesmas limitações que afirmam querer superar.
A compreensão materialista da opressão exige reconhecer que gênero, raça e feminismo constituem uma tríade inseparável, impossível de ser analisada como esferas isoladas ou autossuficientes. O gênero não existe fora das determinações raciais e econômicas que organizam a divisão social do trabalho; do mesmo modo, o racismo só se reproduz de forma estrutural porque atua sobre corpos generificados, padronizando comportamentos, moralidades e funções sociais a partir de um ideal de humanidade branco, cisgênero e masculino. A própria feminilidade é construída como atributo racializado e hierárquico, tornando mulheres negras e pessoas trans mais vulneráveis à precarização e à violência, enquanto mulheres brancas cis assumem posição normativa. A emancipação só avança quando essas lutas se reconhecem como expressões distintas de uma mesma estrutura de dominação e, portanto, como frentes convergentes de um mesmo projeto revolucionário.
A história do movimento comunista mostra que ele pode realizar autocríticas e corrigir rumos, ainda que de maneira lenta. A experiência cubana é exemplar. Nos anos 70, durante o chamado “quinquênio cinza”, intelectuais e escritores homossexuais foram marginalizados e ostracizados. Fidel Castro reconheceu, em entrevista, que houve uma “grande injustiça” nos primeiros anos da Revolução Cubana, assumindo responsabilidade política, ainda que não tenha participado diretamente da decisão das perseguições. A partir das décadas seguintes, Cuba avançou gradualmente na proteção das pessoas LGBT+. Hoje, o país garante redesignação de gênero gratuita, com tratamento médico e cirúrgico quando necessário, casamento entre pessoas do mesmo gênero e até mesmo programas e instituições especializadas na questão LGBT+. O Centro Nacional de Educação Sexual (Cenesex), fundado em 1988 e coordenado pela sobrinha de Fidel e ligado ao Ministério da Saúde de Cuba, promove jornadas de luta contra a discriminação sexual e de gênero, oferecendo painéis, oficinas, apoio psicológico e jurídico e atividades culturais. Cuba hoje é um dos países mais avançados e seguros do mundo para viver sendo uma pessoa LGBT+.
Vale ressaltar que esse e demais episódios não devem ser entendidos como produtos do socialismo, mas como a persistência de preconceitos herdados da ordem capitalista e colonial, que ainda impregnava a sociedade cubana. O movimento comunista, ao nascer dentro de realidades historicamente moldadas pelo patriarcado burguês, inevitavelmente carrega contradições que precisam ser enfrentadas. O mérito da Revolução está justamente em reconhecer esses erros, fazer autocrítica e avançar para superá-los, o que Cuba fez com exatidão. Esse percurso mostra que o marxismo, para se manter vivo e revolucionário, precisa romper com o moralismo burguês e assumir plenamente a luta trans e LGBT+ como um todo, como parte inalienável da luta contra o capitalismo. Ao analisar a interseção entre gênero, transfobia, racismo e exploração de classe, percebemos como a vida das pessoas trans revela com agudeza as estruturas de opressão que permeiam a sociedade capitalista.
A resistência transfóbica não é homogênea: combina elementos religiosos, moralistas, pseudocientíficos e até setores da esquerda que reproduzem ideologias reacionárias. A tarefa revolucionária exige que os comunistas rompam com as visões estreitas que rebaixam a luta trans. Do ponto de vista organizativo, a esquerda radical deve assumir compromissos claros. Isso significa incluir pessoas trans na direção política, garantir espaços de formação que enfrentem a transfobia e construir políticas de base que respondam às suas necessidades concretas. Significa também disputar a consciência da classe trabalhadora contra os preconceitos cultivados, mostrando que a unidade só é real quando inclui todas as suas partes.
Historicamente, travestis e pessoas trans foram mantidas fora da escolarização formal por violências familiares, exclusão institucional e ausência de políticas públicas. O resultado é devastador: segundo a ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), 90% da população trans tem a prostituição como principal fonte de renda, não por escolha, mas por expulsão sistemática do mercado formal. O Projeto Além do Arco-Íris/AfroReggae (2021) mostra que grande parte das pessoas trans é expulsa de casa por volta dos 13 anos, rompendo o percurso educacional antes mesmo do ensino médio. Por isso, apenas 0,02% estão na universidade, 72% não concluíram o ensino médio e 56% pararam no fundamental.
Essas violências não são abstratas: elas matam. O Brasil permanece o país que mais assassina pessoas trans no mundo. Em 2024, 105 pessoas trans foram mortas, segundo o Dossiê da Rede Trans Brasil. Dessas mortes, 93,3% eram mulheres trans e travestis, majoritariamente pardas (36,5%) ou pretas (26%), muitas trabalhadoras sexuais entre 26 e 35 anos (36,8%). A transfobia é racializada, classista, sexualizada e nacional. Não é acidente — é política de morte.
Se estimativas da UNESP apontam cerca de 4 milhões de pessoas trans e não binárias no Brasil (aprox. 2% da população), não é possível naturalizar que quase todas sejam expulsas da educação formal e tratadas como descartáveis. É por isso que pautas como as cotas trans são urgentes — mas não suficientes. A ANTRA destaca que o acesso deve ser acompanhado de políticas de permanência, incluindo bolsas, apoio psicológico, respeito ao nome social, segurança institucional e mecanismos de acolhimento. Portanto, devemos reconhecer a população trans como uma das parcelas mais afetadas no interior do capitalismo.
É nesse ponto que se revela a importância de combater diretamente as falsificações ideológicas que sustentam o patriarcado. Se a luta trans expõe as contradições mais profundas do capitalismo, é porque o próprio sistema se ancora em discursos naturalizantes para legitimar hierarquias sociais. O biologicismo, usado tanto por conservadores quanto por setores reacionários da dita esquerda, é uma dessas armas. O argumento conservador e radical-feminista essencialista parte da máxima: “homem é quem nasce com pênis e cromossomos XY; mulher é quem nasce com vagina e cromossomos XX”. Essa visão reduz o gênero à biologia, ignorando que a própria biologia não é binária. Existem variações cromossômicas, hormonais e anatômicas que desconstroem a ideia de que o corpo humano se divide de forma absoluta em duas categorias. As características sexuais se distribuem em espectro, e as pessoas intersexo — que nascem com traços que não se enquadram no binário — são a prova viva de que a dicotomia rígida é uma invenção social.
A contradição é ainda mais evidente porque a mesma sociedade que insiste que “gênero é biologia” mutila bebês intersexo para forçar seus corpos a caberem na norma binária. Ou seja, não é a biologia que define o gênero, mas a pressão social que interpreta a biologia de modo reducionista e coercitivo. A hipocrisia é gritante: o capitalismo reacionário aceita a biologia apenas quando ela reforça o binário e as estruturas de gênero cisnormativas, mas quando desafia o padrão, “corrige” cirurgicamente. Isso comprova que gênero não se confunde com sexo biológico: o que existe é um regime social que molda corpos para caber em supostas categorias pré-estabelecidas.
Essa desmistificação desmonta as falácias frequentemente utilizadas contra o fantasma do transativismo. Não é verdade que o ativismo trans “nega a biologia”; o que se nega é o biologicismo — a tentativa de aprisionar seres humanos a categorias fixas. Também não é verdade que ele “ameaça as mulheres”: pelo contrário, mulheres trans demonstram que a categoria “mulher” é política e histórica. Outro argumento recorrente é o de que o ativismo trans seria uma imposição identitária liberal. É verdade que o capital tenta capturar pautas trans para o consumo e a política de nicho, mas isso não invalida a luta em si. A crítica marxista deve radicalizá-la, unindo a libertação de gênero à luta de classes.
Outro ponto fundamental é a acusação de que a luta trans ameaçaria gays e lésbicas, afirmativa reproduzida recorrentemente por setores transfóbicos feministas e ditos “LGBs”. Isso não se sustenta, pois a orientação sexual não se define unicamente pela biologia, mas pela construção do gênero. Um homem gay se atrai por pessoas alinhadas ao masculino; uma mulher lésbica, por pessoas alinhadas ao feminino; uma pessoa heterossexual, por pessoas com alinhamento de gênero oposto ao seu — e isso vale para pessoas cis e trans. A raiz da opressão é a mesma: o controle do corpo e do desejo. Nenhuma sexualidade é, em essência, trans-excludente. Os rótulos — hetero, lésbica, gay, bissexual, pansexual — são construções sociais que ajudam a organizar vivências, não essências eternas. Esse fato revela algo fundamental: os rótulos sexuais e de gênero não são verdades absolutas, mas construções sociais e históricas, formas de organizar e dar significado a experiências humanas diversas. Contudo, mesmo dentro da comunidade LGBT+, pessoas trans são marginalizadas.
Hoje, em uma sociedade capitalista patriarcal, a identidade de gênero se torna trincheira de luta e condição de sobrevivência. Para pessoas trans, nome, corpo e identidade não são luxo ou capricho, mas garantias mínimas de existência digna. Reconhecer mulheres trans como mulheres, homens trans como homens e pessoas não binárias em sua especificidade é parte da luta contra o patriarcado. Aqui, abolir o gênero significaria violência, pois, enquanto ele seguir como critério real de opressão, negar sua existência é negar também o direito à luta contra essa opressão. O gênero deve ser enfrentado como realidade histórica e social, mas não como essência eterna.
Uma parte da esquerda contemporânea ainda revela um reacionarismo discreto, especialmente quando o tema é, por exemplo, a linguagem neutra. Essa postura se manifesta na defesa de uma ideia abstrata e homogênea de “classe trabalhadora”, tratada como se fosse uma entidade única, neutra e universal, ignorando que essa classe é composta por pessoas com experiências marcadas por desigualdades específicas. Nesse cenário, a discussão sobre linguagem neutra costuma ser um ponto de resistência: muitos militantes cis — quase sempre homens, quase sempre muito certos de si — assumem o protagonismo de um debate que não diz respeito a eles, como se fossem autoridades naturais para definir quais identidades merecem reconhecimento linguístico. Ao fazer isso, reforçam a mesma estrutura hierárquica que afirmam combater, silenciando as vivências de pessoas trans, não binárias e de outras dissidências de gênero. Essa incapacidade de integrar as dimensões de gênero às análises de classe é uma limitação teórica imensa.
A maior parte das línguas do mundo possui algum nível de neutralidade de gênero gramatical, o que significa que, numericamente, existem mais línguas neutras do que línguas que distinguem masculino e feminino com marcação rígida. A impressão de que o gênero é universal surge porque muitas das línguas globalmente prestigiadas — como o português, que integra o grupo das línguas românicas, uma das famílias com maior marcação de gênero — se espalharam através de processos colonizatórios, ainda que representem apenas uma minoria dentro da diversidade linguística mundial. Em contraste, grande parte das línguas da Ásia, das Américas, da Oceania e muitas da África não marcam gênero gramatical.
Outro ponto fundamental é reconhecer que, nas línguas românicas, a questão vai além da simples binariedade: há também uma desvalorização estrutural do gênero feminino. Essas línguas herdaram do latim não apenas a divisão entre masculino e feminino, mas também uma hierarquia gramatical que coloca o masculino como forma “padrão”, “abrangente” ou “universal”, enquanto o feminino aparece como marcado, secundário ou limitado. Expressões como “o masculino inclui o feminino”, usadas para justificar o uso do masculino genérico, evidenciam essa assimetria: não é apenas que existam dois gêneros, mas que um deles ocupa a posição de norma, enquanto o outro é tratado como exceção ou especificidade.
Quando observamos as línguas de povos originários, essa perspectiva fica ainda mais evidente: muitas delas não possuem distinção gramatical entre masculino e feminino, e várias organizam sua morfologia de forma completamente diferente das categorias herdadas das línguas colonizadoras europeias. Portanto, insistir que o binarismo de gênero presente em idiomas coloniais é “natural” ou “universal” significa ignorar — e, em certo sentido, apagar — a lógica linguística de povos que já praticam a neutralidade há séculos. Por isso, não faz sentido afirmar que a pauta da linguagem neutra seria uma “importação estrangeira”; na verdade, é o binarismo gramatical europeu que é minoritário. É muito mais fácil listar sociedades cujas línguas têm algum nível de neutralidade de gênero do que encontrar exemplos opostos, o que desmonta a ideia de que a neutralidade seria artificial ou alheia às realidades linguísticas do mundo.
Além disso, tratar a pauta da linguagem neutra como “menos necessária” é uma forma de minimizar e deslegitimar debates centrais sobre relações de gênero, desigualdades e reconhecimento social. A língua não é apenas um meio de comunicação: ela estrutura percepções, molda identidades e define quem pode ser nomeado, reconhecido e incluído. Quando alguém afirma que discutir linguagem neutra é irrelevante, está, mesmo sem perceber, reforçando a ideia de que apenas certas identidades merecem espaço simbólico e legitimidade linguística. Isso apaga experiências reais de pessoas que não se veem representadas nas formas convencionais de tratamento e perpetua um modelo de sociedade em que a diversidade de gênero é silenciada.
A linguagem neutra é “rebelde” porque quebra propositalmente a lógica tradicional das línguas românicas, onde o masculino funciona como forma dominante e universal. Ao propor alternativas, ela expõe que essa estrutura não é natural, mas sim um mecanismo histórico de poder que coloca o masculino no centro e deixa o feminino e identidades não binárias à margem. Usar linguagem neutra é uma forma direta de dizer que essa hierarquia não é aceita: é uma recusa em repetir uma gramática que reforça desigualdades de gênero. Por isso, ela incomoda — porque mostra que a língua pode mudar e que a estrutura que parecia neutra é, na verdade, uma estrutura de opressão que pode e deve ser questionada.
A análise materialista-histórica do gênero demonstra que ele surge de funções sociais concretas: divisão sexual do trabalho, reprodução biológica, transmissão de herança. Essas funções foram cristalizadas em normas sociais e culturais, criando a ideia de que homens e mulheres são categorias fixas. É desse processo que surge a categoria “trans”: quando uma identidade não corresponde ao gênero atribuído ao nascer, o sistema a marca como “desvio”. Em uma sociedade emancipada, sem imposição normativa, a distinção cis/trans perderia sentido. Não porque deixariam de existir pessoas trans, mas porque não haveria mais a imposição de uma norma que tornasse essa diferença categórica. Isso exige compreender a distinção cis/trans como expressão do patriarcado. Essa oposição só existe porque há um regime de gênero que naturaliza o sexo designado ao nascer. Romper essa hierarquia significa garantir que ser trans não implique mais marginalização. Do mesmo modo, a oposição binário/não binário é histórica, não natural. Culturas antigas já reconheciam gêneros além do binário, mas a ordem burguesa reforçou a cis-heteronormatividade. No horizonte, ser homem, mulher ou não binário não implicará desigualdade, mas apenas formas distintas de viver.
A história mostra que o gênero além do binário não é recente. No Paleolítico, há indícios de figuras intermediárias em rituais espirituais. Na Mesopotâmia, sacerdotes Gala cumpriam funções religiosas femininas. Na Índia antiga, os hijras eram reconhecidos como terceiro gênero, integrados à vida social. Entre os zapotecas, no México, existem até hoje as muxes. Povos indígenas da América do Norte reconheciam os Two-Spirit, pessoas que apresentavam em sua composição espiritual dois gêneros distintos, como figuras sociais e espirituais. Entre os bugis da Indonésia, havia cinco gêneros reconhecidos. Na África Ocidental, homens femininos desempenhavam papéis religiosos. No Japão, no teatro Kabuki, homens representavam mulheres de forma ritualizada. Em Samoa, os fa’afafine são um gênero distinto. Na Tailândia, kathoey são presença cultural consolidada. Esses exemplos históricos comprovam que a rigidez binária é produto de um longo processo patriarcal e colonial.
A própria colonização do Brasil fornece registros explícitos sobre a existência de identidades de gênero não binárias ou dissidentes entre povos originários. Missionários cristãos, cronistas portugueses e administradores coloniais descreveram com repulsa o papel social de pessoas consideradas “homens femininos”, “mulheres guerreiras”, figuras espirituais andróginas e indivíduos que transitavam entre posições de gênero. Esses relatos, frequentemente escritos no contexto de violência catequizadora, denunciam o choque cultural entre uma ordem europeia profundamente patriarcal e sociedades indígenas com configurações de gênero mais plurais. A colonização foi não apenas um processo de pilhagem econômica, mas também de imposição simbólica: destruição de formas comunitárias de parentesco, perseguição a sexualidades dissidentes, repressão da poligamia matrilinear, imposição da moral cristã e reconfiguração da família indígena sob moldes monogâmicos patriarcais. Assim, a herança colonial do gênero não está apenas na língua portuguesa, mas na própria violência civilizatória que transformou as relações de gênero nas Américas, substituindo pluralidades ancestrais por um modelo de dominação sexual e binária, útil à escravidão, à evangelização e ao controle colonial dos corpos.
No projeto socialista, o desafio é reorganizar contradições sob direção proletária, destruindo as bases materiais da opressão de gênero — divisão sexual do trabalho, moral patriarcal, família privatista. Nesse estágio, ser homem ou mulher, trans ou cis, deixa de determinar acesso a trabalho, dignidade ou poder político. O horizonte é a abolição do gênero enquanto categoria de dominação: não a destruição de identidades em suas formas de vivências, mas sua libertação da função opressiva. Assim como a abolição da propriedade privada não significa eliminar objetos, a abolição do gênero não significa apagar identidades, mas transformá-las em formas livres, estéticas e culturais, sem hierarquia ou marginalização. A transição entre essas etapas precisa ser conduzida responsavelmente. Hoje, nomear as diferenças cis/trans ou binário/não binário é necessário para organizar resistência. No socialismo, essas distinções deverão perder peso à medida que o patriarcado for desmantelado, avançando até deixarem de ser oposições políticas, tornando-se simples variações da liberdade humana.
A questão estética também é central. O patriarcado capitalista impõe padrões rígidos — magreza, delicadeza e hipersexualização às mulheres; força e rigidez aos homens. Para pessoas trans, a cobrança estética se intensifica. Mulheres trans são forçadas a “provar” feminilidade sob critérios eurocêntricos; homens trans sofrem invisibilidade e deslegitimação; pessoas não binárias enfrentam negação absoluta, já que não existe espaço reconhecido fora do binário. As políticas públicas, ao ignorarem essas realidades, reproduzem a opressão: diagnósticos compulsórios para acesso à saúde, campanhas que invisibilizam corpos e vivências não binárias, políticas sociais que reforçam o binário.
É muito comum observar notícias em que mulheres cis, sobretudo aquelas que não performam a feminilidade esperada, são hostilizadas pelo simples fato de agressores presumirem se tratar de uma pessoa trans. Esse processo se torna ainda mais cruel quando direcionado a mulheres negras e racializadas, pois o padrão eurocêntrico de feminilidade sempre foi excludente e desumanizador. Assim, fica evidente que a transfobia não atua isoladamente: ela se apoia nas mesmas estruturas que sustentam o racismo e o machismo, formando uma rede de opressões interligadas. Essa intersecção mostra, de forma incontestável, que a luta trans está organicamente vinculada às lutas feminista e antirracista, sendo impossível separá-las sem enfraquecer a todas.
As relações de gênero demonstradas até aqui também se aplicam à luta pela autonomia reprodutiva. A maternidade compulsória e a criminalização do aborto foram sempre armas patriarcais. Inicialmente, o feminismo levantou essas bandeiras, mas a realidade trans mostra que não são apenas “questões femininas”. Homens trans e pessoas não binárias também engravidam, abortam e sofrem violência do controle sobre seus corpos. A luta contra a opressão reprodutiva, portanto, não é exclusiva das mulheres cis, mas de todos os corpos capazes de gestar. Reduzi-la ao “feminino” seria invisibilizar e essencializar. Um movimento revolucionário consequente deve reconhecer a centralidade histórica do feminismo e, ao mesmo tempo, ampliá-lo a uma luta universal pela liberdade reprodutiva.
Aqui surge uma questão específica: podem homens trans integrarem as lutas feministas? Se o feminismo for entendido de forma essencialista, como luta exclusiva das mulheres cis, eles ficam à margem. Mas, materialmente, homens trans sofrem opressão de gênero e carregam marcas históricas da socialização feminina, como controle reprodutivo e violência sexual. Da mesma forma, mulheres trans, quando são reconhecidas socialmente como mulheres, sofrem com o machismo. É fundamental, então, pensar a formação de uma frente transfeminista e antipatriarcal. Excluí-los seria reforçar a cisnormatividade e fragmentar a resistência.
Do ponto de vista teórico, é fundamental aprofundar a crítica marxista de gênero. O caminho é compreender o gênero como relação histórica, mutável, vinculada à divisão social do trabalho e às estruturas do patriarcado que herda elementos da colonização. Essa abordagem mostra que a emancipação trans não é ruptura abstrata, mas consequência lógica da luta contra a exploração. E mais: somente ao reconhecer e integrar a pauta trans às discussões de gênero e feministas é que se torna possível compreender as relações de gênero em sua totalidade, evitando reduções parciais e alcançando a verdadeira dimensão da luta antipatriarcal.
Desde Marx e Engels, o método consistiu em mergulhar nas formas concretas de vida, nas estruturas comunitárias, nos mitos, nos sistemas familiares e nas práticas culturais que moldam a experiência humana. Engels estudou profundamente sociedades ágrafas e matrilineares, Marx pesquisou os iroqueses e correspondia com etnólogos russos sobre comunas camponesas, e Lenin analisou povos colonizados para compreender como organizar a revolução em formações sociais específicas. Retomar essa herança implica que marxistas contemporâneos precisam se aprofundar na antropologia não como curiosidade acadêmica, mas como instrumento para compreender como gênero, parentesco, espiritualidade, sexualidade e organização social se manifestam de maneiras múltiplas e historicamente situadas.
Defender a causa transgênero é dever dos comunistas porque ela é parte orgânica da luta de classes, da destruição do patriarcado e da construção do socialismo. Mas, para além disso, a pauta trans revela, de forma medular, a possibilidade de romper as limitações que existem nas análises marxistas de gênero, raça e feminismo. Como marxistas, não podemos tratar a questão trans como questão secundária: ela é frente estratégica emancipatória. Quem nega a luta trans enfraquece a luta revolucionária; quem a defende fortalece o caminho para a libertação da classe trabalhadora.
Rowan Fiorelli – Militante da LCB
Publicado em 23/11/2025