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MOVIMENTO DE MASSA E PARTIDOS: APONTAMENTOS A PARTIR DE FLORESTAN FERNANDES.

Artigo de opinião por Davi Perez

“Quando se dá prioridade ao movimento socialista, estamos com isso debilitando os partidos socialistas? É claro que não! Desde que surja um espaço político comum e que ele seja respeitado e possa crescer – é claro que cada partido socialista pode explorar este espaço de uma forma crescente em termos de sua viabilidade, de sua variabilidade e de sua versatilidade. É claro que esse espaço, ao crescer, aumenta a liberdade dos partidos socialistas se realizarem; ele não limita essa liberdade, ele não a constrange. Aliás, o espaço comum não tem um fim específico, não se destina a alimentar o fluxo de desenvolvimento de uns partidos socialistas e a sufocar o de outros. De modo que o movimento não pode ser visto como uma arapuca; ele não nasce para destruir o socialismo, ao contrário, ele surge e vigora como fator de vitalidade, de versatilidade e de flexibilidade dos partidos” (FERNANDES, 1980, p. 69-70).

O desprendimento e a capacidade de colocar na balança as convergências e as divergências para produzir novas sínteses que permitam uma unidade superior, não debilita o papel específico dos partidos e das organizações políticas. Pelo contrário, permite um raio de abrangência maior para suas políticas e a condução de uma disputa saudável que faça com que as referências sejam erigidas com legitimidade do movimento geral, e não se autoproclamando através de processos corporativistas e arbitrários.

Tratando da relação entre movimento socialista e partido político, Fernandes (1980, p. 6-7) fala do movimento socialista enquanto uma confluência das forças que polarizam com a ordem capitalista, “para introduzir reformas antiburguesas dentro dessa ordem; ou para alimentar uma revolução contra a ordem e organizar a sociedade, a economia, o sistema de poder em novas bases”, enquanto os partidos políticos,

“[…] são a forma de organização institucional dessas forças. Essas forças sociais se organizam institucionalmente e é através dos partidos que se realiza a aglutinação de forças; e se realiza, também, a sua aplicação em fins mais ou menos visados consciente, deliberada e organizadamente. É claro que os conflitos de classe delimitam a área dentro da qual se realiza essa utilização concentrada das forças sociais antagônicas à ordem capitalista. Através do conflito de classe se tem o sistema de referência que ordena a concentração institucional das forças sociais que são contra a ordem (o “poder revolucionário” ou o “antipoder”)” (FERNANDES, 1980, p. 7).

De qualquer maneira, não se pode, segundo Fernandes (1980, p. 8-9), situar o movimento socialista e os partidos socialistas no vácuo. Eles são realidades históricas e existem dentro de uma sociedade capitalista com suas características particulares, e é necessário considerar o grau de amadurecimento e diferenciação do regime de classes, isto é, em qual nível de polarização chegou a luta de classes e qual o amadurecimento organizativo/subjetivo das classes trabalhadoras: “Quanto mais diferenciado for o regime de classes […], mais forte é o movimento socialista e, em consequência, também mais forte é o padrão de partido socialista que corresponde, na situação histórica, a esse movimento”. Há desse modo uma interdependência entre movimento e partido mediada pelos conflitos de classe.

Luiz Carlos Prestes e Florestan Fernandes

Florestan Fernandes considera que quando o regime de classes não é suficientemente diferenciado, forte e desenvolvido, como no caso do Brasil, “o espaço político para a existência de um movimento socialista é reduzido, e, em consequência, os partidos socialistas são mais ou menos incongruentes”, representando “mais fins psicológicos do que políticos e, às vezes, respondem mais à alienação moral de grupos privilegiados, que à impulsão coletiva das pressões proletárias” (FERNANDES, 1980, p. 9). O corporativismo, enquanto expressão coletiva do individualismo pequeno-burguês, pode mover coletividades partidárias que acabam se transformando num clube, ou círculo de contatos, fazendo do partido – que deveria ser um meio para as lutas das classes trabalhadoras e para a construção do socialismo – um fim em si mesmo.

Como poderíamos então apontar para a superação dessas debilidades? Fernandes (1980, p. 10-11), sem desconsiderar o papel dos partidos políticos, ressalta a importância de um foco mais abrangente que consiga captar o verdadeiro nível de consciência e organização da classe trabalhadora no movimento real da sociedade, projetando as vanguardas ou os partidos como consequência das lutas e do amadurecimento deste movimento real, e não como grupos corporativistas e auto-proclamatórios desvinculados das massas proletárias e populares:

“É preciso não pensar na classe como um pé-de-chumbo, como se a classe afundasse o movimento socialista, afundasse o partido. A classe não é um pé-de-chumbo; ela é o elemento central, que condiciona e regula o vigor do movimento e do partido. É por isso que as pessoas que partem da reflexão localizando-se no partido não possuem um ponto de referência correto. Porque elas perdem o elemento estrutural e histórico, que serve de baliza para que se entenda não só o presente, mas o fluir desse presente na direção do futuro. Os processos se abrem para a frente, não para trás. Para trás está alguma coisa que nós pretendemos morta, que nós queremos destruída”.

Trata-se de um processo que se inicia pela criação de um espaço democrático dentro da sociedade capitalista. Um espaço democrático para e com as classes trabalhadoras, de maneira que “através dos conflitos da classe contra a burguesia e contra o capitalismo, por reformas anticapitalistas, por revolução dentro da ordem e mais tarde por revolução contra a ordem, movimento socialista e partidos socialistas se consolidem mutuamente” (FERNANDES, 1980, p. 60-61). Notemos que Florestan Fernandes não está descartando a importância do partido, mas alertando para a importância do movimento real da classe para o vigor do próprio partido. Não atoa Karl Marx afirmava que um passo do movimento real vale mais do que uma dúzia de programas. É necessário também um olhar “de fora para dentro” do partido, considerando a realidade e a pluralidade das classes sociais na atual conjuntura e na realidade nacional, e como estas estarão dispostas ou não a absorver a política do partido.

As dificuldades que enfrentamos para a unidade dos movimentos e partidos que expressem as forças proletárias e populares em um projeto comum tem como uma de suas causas o corporativismo, incapaz de vislumbrar as potencialidades do movimento e do desprendimento por uma unidade superior.

Davi Perez – Professor de Departamento de Serviço Social da Universidade Federal de Ouro Preto e militante da Liga Comunista Brasileira – LCB

REFERÊNCIA:

FERNANDES, Florestan. Movimento socialista e partidos. São Paulo: Hucitec, 1980.