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O SECTARISMO COMO DESVIO DA LUTA REVOLUCIONÁRIA.

Artigo de opinião por Rowan Fiorelli

  1. ACERCA DA MÁSCARA DO SECTARISMO

O sectarismo, longe de ser uma expressão de firmeza ideológica, é uma manifestação da degeneração, que resulta do isolamento teórico e prático das massas. Ele assume a forma de uma suposta “pureza revolucionária”, mas na verdade encarna a negação do marxismo como método científico e transformador. O sectário abandona a análise concreta da realidade concreta — base da ação revolucionária — para agarrar-se a dogmas abstratos e à lógica do ressentimento político.

Na aparência, o sectário defende os princípios do socialismo científico com intransigência. Na realidade, cristaliza fórmulas mortas, recusa alianças táticas e substitui o trabalho de construção política por autoafirmação simbólica. O resultado é o afastamento completo das massas populares, a criação de guetos ideológicos e, muitas vezes, a sabotagem de espaços de unidade em nome de uma hegemonia imaginária.

Esse comportamento não nasce de uma posição teórica avançada, mas da incapacidade de lidar com as mediações da realidade, com as contradições entre consciência e existência, entre militantes e massas, entre tática e estratégia. Por isso, o sectarismo expressa, no fundo, uma concepção antidialética: ele nivela todas as contradições e trata qualquer divergência como traição.

Essa lógica se expressa de forma aguda nas experiências da dita esquerda radical brasileira. No interior de sindicatos, entidades estudantis e frentes populares, é comum a atuação de correntes sectárias que tentam capturar completamente os aparelhos e expulsar, caluniar ou boicotar quaisquer forças que disputem hegemonia nos mesmos espaços. Ao fazerem isso, praticam o centralismo burocrático sem centralidade política real — não para avançar a consciência das massas, mas para manter a própria reprodução grupal. A organização vira um fim em si mesma.

Esse tipo de postura não apenas inviabiliza a construção de frentes únicas operárias e populares, como também alimenta a fragmentação da luta, destrói a confiança entre correntes e grupos e, o que é mais grave, ajuda a classe dominante, que se beneficia do isolamento e da desorganização da resistência popular.

O sectarismo é também, muitas vezes, a face reversa do oportunismo. Enquanto o oportunista abre mão dos princípios para obter integração com o sistema, o sectário transforma os princípios em dogmas abstratos, completamente descolados da realidade concreta. Ambos recusam o caminho mais difícil: a construção de hegemonia real sobre as massas populares, baseada no enraizamento, na disputa ideológica e na inserção orgânica.

   2. SECTARISMO EM SUA FORMA AGUDA, O “EXCLUSIVISMO DE VANGUARDA”

O sectarismo, em sua forma mais destrutiva, não se contenta em manter-se isolado da luta real — ele busca impedir a ação de todos que não se submetem à sua linha exclusiva. A postura sectária, em vez de contribuir com o avanço da consciência de classe, termina por sequestrar bandeiras legítimas de luta, convertendo causas populares em propriedades exclusivas de pequenos grupos. Assim, o sectarismo não se limita à autopreservação isolada.

Em seu desenvolvimento mais destrutivo, o sectarismo evolui para um comportamento que chamaremos de “exclusivismo de vanguarda”. Aqui, não se trata apenas de um grupo que se recusa ao diálogo ou à unidade de ação. Trata-se de um projeto consciente ou inconsciente de monopolizar a legitimidade da luta popular, apropriando-se de pautas históricas como se fossem patrimônio exclusivo de uma única organização ou corrente.

Importa esclarecer, entretanto, que ao nos referirmos ao exclusivismo de vanguarda, não estamos tratando de uma vanguarda real. Trata-se de uma suposta vanguarda, autoproclamada, que opera à margem do processo vivo de construção revolucionária. No Brasil, não há, hoje, uma vanguarda revolucionária consolidada, enraizada e reconhecida pelas massas em movimento. A vanguarda autêntica não é decretada, tampouco emerge de critérios formais ou autolegitimações grupais. Ela se forja no calor das lutas concretas, na fusão entre teoria e prática, entre consciência avançada e enraizamento popular. Não é escolhida pela classe em um movimento mecânico, mas se constrói histórica e dialeticamente, à medida que uma organização prova, na prática, sua capacidade de direção política, ideológica e organizativa.

O exclusivismo de vanguarda, ao contrário, prescinde dessa construção e se antecipa a ela por meio da negação dos demais sujeitos revolucionários. Não constrói hegemonia, tenta impor monopólio; não amplia a consciência, patrulha fronteiras ideológicas. E ao fazer isso, contribui objetivamente para o enfraquecimento da luta popular e para a desarticulação das forças que, em sua diversidade, poderiam compor um verdadeiro campo estratégico revolucionário.

O exclusivismo de vanguarda não nasce da força, mas da fraqueza. Ele se alimenta da incapacidade de construir direção real e responde a isso tentando silenciar ou deslegitimar outros sujeitos políticos. Seu método não é disputar as massas, mas sabotar aqueles que as disputam com mais êxito, mesmo quando compartilham os mesmos objetivos gerais. Trata-se de um desvio que prefere perder a luta a vê-la conduzida por outro ator. A causa revolucionária, então, torna-se refém da vaidade organizativa.

Esse exclusivismo opera em dois planos simultâneos:

  • no plano organizativo, atua para inviabilizar frentes, dividir categorias, desmobilizar atos comuns, sempre sob o pretexto da “pureza ideológica”;
  • no plano simbólico, tenta apagar a pluralidade legítima de táticas no seio do campo popular, reduzindo toda divergência a desvio de classe.

Mais grave ainda, o exclusivismo de vanguarda tenta capturar o sentido da história — em vez de compreendê-la. Em nome da luta de classes, nega a complexidade do seu terreno atual, rompendo com o princípio essencial do marxismo: a análise concreta da situação concreta.

Esse desvio é, por sua essência, antimarxista. Substitui a luta real das classes por uma guerra simbólica entre siglas; troca o enraizamento popular pela autopreservação grupal; abandona o método dialético por um moralismo inócuo. Sob a máscara da intransigência revolucionária, oculta-se uma forma de oportunismo invertido: a recusa de crescer para preservar o controle total sobre o pouco que se tem.

Em vez de atuar junto a outras forças que compartilham objetivos comuns, mesmo que parciais, o grupo sectário opera pela lógica da exclusividade: somente sua interpretação da luta tem validade, somente sua presença é legítima nas entidades e espaços coletivos. Pior: quando outros setores da esquerda buscam intervir de forma ampla e consequente numa pauta ou movimento, os sectários recorrem ao boicote, à sabotagem e à deslegitimação. Distorcem as palavras dos outros, insinuam traições, denunciam alianças táticas como se fossem desvios estratégicos — tudo para manter sua “pureza” incontestada.

Esse comportamento causa um duplo efeito nefasto. Por um lado, afasta setores amplos da classe trabalhadora e dos movimentos sociais, que não se veem representados pela agressividade estéril dessas correntes. Por outro, impossibilita a construção de frentes unitárias, minando a ação coletiva justamente nos momentos em que ela é mais necessária — seja para enfrentar ataques patronais, resistir à repressão, ou impulsionar políticas populares.

Se a classe trabalhadora não reconhece mais o movimento revolucionário como uma força concreta de transformação, isso se deve, em parte, ao descompasso entre teoria e prática cultivado por essas correntes. Ao invés de construir pontes, constroem muralhas. Ao invés de caminhar entre as massas, permanecem em salões fechados. E ao invés de compartilhar a luta, tentam monopolizá-la — como se a revolução fosse uma marca registrada de uso exclusivo.

A superação desse desvio passa pela reconstrução de uma prática política realmente enraizada no povo. Isso exige não apenas denunciar o sectarismo, mas também construir alternativas vivas e eficazes: organizações abertas à pluralidade da classe, linhas políticas firmes, porém flexíveis, disposição concreta para disputar hegemonia nas frentes reais de luta. Significa também afirmar com clareza quem são, de fato, os aliados do povo e quem são seus inimigos.

O combate ao sectarismo — e ao exclusivismo de vanguarda como sua forma aguda — exige um profundo retorno ao materialismo histórico-dialético. É preciso recolocar a luta de classes no centro da análise, reconhecer que há contradições no seio do campo popular, e que a tarefa estratégica é derrotar o imperialismo, o latifúndio, os monopólios e o Estado a serviço destes. A crítica entre forças revolucionárias deve existir, sim — mas em chave construtiva, nunca sabotadora.

   3. SECTARISMO ESTÉTICO E SIMBÓLICO – A LUTA PELA FORMA COMO TERRENO DE DISPUTA REVOLUCIONÁRIA

O sectarismo, enquanto desvio político, não se limita às esferas organizativas ou táticas da militância. Ele também se manifesta de modo profundo e insidioso no campo simbólico, estético e cultural, impondo padrões rígidos de expressão, linguagem e comportamento como se fossem critérios infalíveis de compromisso revolucionário. Essa forma de sectarismo opera sobre a aparência das coisas e não sobre sua essência — um desvio idealista que transforma a forma em fetiche e o conteúdo em dogma.

Essa manifestação se apresenta frequentemente na rejeição de expressões culturais populares, na negação de linguagens acessíveis às massas, ou mesmo na demonização de manifestações artísticas que não reproduzam formas já canonizadas pelos círculos militantes. Aqui, a pureza ideológica é projetada para o plano da forma, criando uma ortodoxia estética que separa — em vez de unir — os elementos vivos da cultura popular das expressões políticas da luta revolucionária. Nesse plano simbólico, o sectarismo se assemelha a uma “liturgia revolucionária” vazia, na qual certos ritos, formas de se vestir, falar e até de escrever são transformados em índices de autenticidade política. Desse modo, militantes que adotam outras formas — talvez mais populares, mestiças, híbridas ou contemporâneas — são rechaçados como “reformistas”, “identitaristas” ou “despolitizados”. Essa patrulha estética forma um campo de exclusão simbólica que impede a aproximação com setores mais amplos da classe trabalhadora e da juventude, tornando o movimento cada vez mais autorreferente.

Trata-se de uma inversão perversa na relação entre política e arte: aqui, a forma cultural é colocada acima da política concreta. A hegemonia exige a disputa do “senso comum” e não o seu desprezo. A arte revolucionária, para ser revolucionária de fato, precisa ser compreensível, vívida, ligada à experiência real do povo — não uma caricatura de “proletariedade” anacrônica, erguida como totem da militância puritana. Essa ortodoxia simbólica está diretamente ligada ao exclusivismo de vanguarda. É no plano estético que esse exclusivismo se constrói e se reproduz, ao determinar quem pode ou não ser “revolucionário” com base em marcadores superficiais. Trata-se de uma forma sofisticada de reprodução do capital simbólico dentro da própria dita esquerda radical — em que um grupo se arroga o monopólio da estética da revolução e exclui todo o resto como desviacionismo.

Mas a revolução não se faz com uniformes simbólicos. Ela se faz com o povo real, com suas contradições, impurezas e formas culturais vivas. Romper com esse sectarismo simbólico é resgatar a potência criadora da cultura popular na construção da hegemonia revolucionária. É permitir que a forma esteja a serviço da estratégia, e não o contrário. É reconhecer que uma estética verdadeiramente revolucionária nasce do encontro entre o conteúdo comunista e a experiência sensível e histórica das massas.

    4. UM BALANCEAMENTO CORRETO AO EVITAR OS DESVIOS

A superação desses desvios exige compreender que eles não são apenas erros pontuais, mas expressões das contradições reais da luta política. E só se resolvem afirmando os aspectos corretos que cada crítica contém, mas integrando-os de forma superior em uma prática revolucionária viva. Isso só é possível com firmeza ideológica real, baseada na teoria revolucionária, e com flexibilidade tática concreta, fundada na inserção prática nas lutas populares.

Superar o sectarismo, portanto, não é tarefa de conciliação, mas de combate político rigoroso. Não se trata de abdicar da crítica ou de minimizar as diferenças ideológicas, mas de saber situá-las no contexto da luta real, onde a divisão entre aliados e inimigos não é feita por conveniência doutrinária, mas por análise concreta da posição de classe. Um partido ou movimento revolucionário não pode se permitir o luxo da autossuficiência: precisa inserir-se nas massas, dialogar com suas demandas reais, disputar sua consciência, organizar sua força.

A maturidade estratégica exige compreender que as revoluções não nascem da negação de tudo o que é impuro ou contraditório, mas da intervenção correta nas mediações da história. A linha revolucionária é aquela que se constrói com os pés no barro da realidade nacional, sem ceder à pureza abstrata nem ao cinismo pragmático. É com base nesse equilíbrio tenso que será possível derrotar o inimigo principal — o imperialismo e sua burguesia aliada —, o que só será possível com a construção de um bloco popular revolucionário com capacidade real de direção.

Essa tarefa, no Brasil, exige uma análise concreta da realidade nacional, capaz de articular a luta de classes com a luta anti-imperialista, a questão agrária e a questão urbana, a luta antirracista com o combate à dependência estrutural. Não se trata de adaptar o marxismo a uma forma “brasileira” superficial, mas de desenvolver o materialismo histórico partindo da especificidade da formação social brasileira — com sua herança colonial, seu capitalismo dependente, suas classes dilaceradas por contradições regionais, étnicas e econômicas.

Um projeto revolucionário brasileiro precisa retomar a centralidade da questão nacional como mediação concreta da luta de classes. Isso significa confrontar a dominação imperialista em suas múltiplas formas — econômica, militar, ideológica — e construir um programa que una a classe trabalhadora urbana, o campesinato pobre, os povos indígenas, a juventude periférica e os setores médios em luta contra o sistema. Mas isso só será possível combatendo o sectarismo, que rompe a unidade possível, e sem o oportunismo, que dissolve a direção necessária.

A crítica ao sectarismo não é apenas crítica a um comportamento isolado, mas à incompreensão do processo da revolução como um todo. Só um projeto político que una firmeza e flexibilidade, análise concreta e método vivo, pode forjar, no Brasil, o caminho real da revolução popular — profundamente nacional, verdadeiramente internacionalista, e materialmente enraizada nas contradições históricas do nosso povo.

A chave está na construção de direção revolucionária enraizada — que seja expressão real da classe trabalhadora em movimento, e não proclamada por decreto. A vanguarda não se impõe: ela se forja na luta, no aprendizado com as massas, na prática de unidade e luta, de teoria e ação.

Evitar esses desvios não significa eliminar a contradição — mas sim organizá-la. Isso é política revolucionária. Isso é hegemonia. E é nesse caminho que se constrói uma estratégia socialista verdadeiramente à altura da necessidade histórica.

Rowan Fiorelli – Militante da Liga Comunista Brasileira – LCB

Publicado em 18/09/2025